Cidades

Natal deve ser de tristeza e reforço nos laços de afeto

Pandemia promete alterar forma de celebrar o Natal. Foto: Divulgação

Com o alerta de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) sobre a possibilidade de uma nova onda se sobrepondo à primeira, após o aumento acelerado de casos de Covid-19 nas últimas semanas, surgem incertezas sobre a tradição do Natal e o sentimento de união acaba dando lugar a insegurança. Com mais de 1,4 mil vítimas fatais da doença apenas nos municípios de Niterói e São Gonçalo, a pandemia — que já se arrasta por quase dez meses no Brasil — deixa um rastro de vazio no peito.

Mesmo a chegada de uma vacina capaz de imunizar a população contra o vírus, quem sentiu na pele — e no coração — os efeitos da pandemia garante que será difícil superar os estragos causados pela doença. A técnica de enfermagem Débora Ramos, de 26 anos, precisou enfrentar junto com os irmãos o pior cenário imaginável com relação à infecção. Uma semana após a reunião familiar do Domingo de Páscoa, a matriarca Luci Elena Moura, de 54 anos, não resistiu aos sintomas e faleceu no Pronto Socorro de São Gonçalo (PSSG), no Zé Garoto.

"Foi muito impactante porque a gente não tinha ainda dimensão do que era a doença e a gente nunca espera que vai acontecer com a nossa família. Fiquei dias me culpando, me perguntando se eu tinha levado o vírus para ela. Nossa família teve que pedir forças a Deus e se unir ainda mais. Ficamos despedaçados porque ela era a coluna da nossa família. Ela que segurava a nossa casa"

Débora Ramos, 26 aos, técnica de enfermagem
Luci (de amarelo) tinha três filhos. Foto: Arquivo Pessoal

Moradora do bairro do Vila Lage, em São Gonçalo, a família ainda não consegue pensar no Natal — data que Luci adorava — sem a peça mais importante. Débora conta que, no ano passado, acabou não podendo participar da ceia porque o plantão no hospital não permitiu. Para a profissional da saúde, o pior de todos os momentos é, até hoje, ter que explicar para o filho, de apenas 5 anos, o destino da vovó.

"Todo dia ele fala 'mamãe, eu quero ir para o céu, quero ficar com vovó'. Tenho que me manter forte para passar essa força para ele também"

Luci faleceu no dia 19 de abril de 2020, seis dias após dar entrada no Centro de Terapia Intensiva (CTI) do PSSG. De acordo com familiares, apesar de ainda não integrar o grupo de risco pela idade, a dona de casa sofria com comorbidades como diabetes e hipertensão.

A matriarca da família era de Cambuci, no Norte do Rio, foi mas criada no bairro Gradim e chegou a trabalhar como secretária executiva de um plano de saúde. Casou-se com um policial civil e teve três filhos. Após muitos anos dedicados à família, cursou Direito e fez uma pós-graduação na área, mas nunca exerceu a profissão.

Mesa vazia

Ceia não terá mesa cheia na família Santos. Foto: Divulgação

Na família Santos, a ceia de Natal também não vai ser com mesa cheia neste ano. O casal, Cláudia e Fabrício, que costumava juntar as duas famílias em casa, no bairro de Nova Cidade, em São Gonçalo, planeja fazer um jantar para apenas três pessoas. A pandemia frustrou até mesmo planejamentos anteriores deles, como a celebração a portas fechadas do aniversário de 1 ano do primeiro filho, Lucas.

"Desde o início da pandemia, quando surgiram os primeiros casos, já nos trancamos em casa para evitar expor o bebê ao risco da doença. Eu sempre gostei de mesa cheia, de chamar todos os parentes, tantos os meus, quanto os do meu marido. Mas esse ano não vai dar. A compra de mercado vai ser mais barata e o número de pratos serão três. Mas tenho certeza que amor não vai faltar", afirmou Cláudia, de 32 anos.

Para o marido, Fabrício Santos, de 35 anos, é melhor deixar 'a poeira abaixar' esse ano, devido à nova alta de contaminações da doença, e celebrar com ainda mais gosto a data no ano que vem. Segundo o administrador, reduzir o tamanho da festa não tem o poder de 'apagar' o espírito de Natal.

"O Natal é renovação da união, do afeto e da fé. É tempo para refletir sobre os acontecimentos e entender as vontades divinas. Neste ano, muitas famílias não vão poder comemorar com entes queridos que perderam. Quem conseguiu manter todo mundo com saúde precisa ter a responsabilidade de esperar um pouco. Mais um ano e a mesa voltará a estar cheia, eu creio nisso"

Espírito de Natal

Especialista acredita na renovação da esperança. Foto: Divulgação

O agravamento da situação da pandemia no Brasil e no mundo exigirá novos modos de comemoração das festas de Natal. A professora de pós-graduação do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Lucia Novaes Malagris, acredita que poderá haver grande frustração, ansiedade, estresse e tristeza, considerando que são datas tradicionalmente de encontros familiares. No entanto, reitera que é possível que algumas pessoas experimentem o sentimento de solidariedade e de valorização das relações.

"A união de uma família ou de amigos não existe somente pela presença física, pois os laços, quando sólidos, não se desfazem pela necessidade de distanciamento. É possível até que a união se fortaleça como uma necessidade de lidar com a situação. Com a internet, a possibilidade de manter contato de algum modo, ajuda a manter a união. Acredito que a esperança por dias melhores estará presente, especialmente associada à possibilidade da vacina que nos traga de volta a liberdade"

Segundo a especialista, dependendo do caso, a falta do afeto trocado nos encontros presenciais pode gerar consequências ainda mais negativas. Isso porque, a psicóloga acredita que as pessoas que apenas se encontram nessas datas podem ter a expectativa frustrada.

"Algumas pessoas vivem sozinhas e, nessas datas, têm a oportunidade de estarem com outras, o fato de isso não acontecer pode deixá-las deprimidas. Temos também de considerar aquelas que já sofrem de transtornos de ansiedade ou de humor, como a depressão, e que, devido ao distanciamento, especialmente em datas especiais, podem ter o quadro agravado", alerta.

Pacientes e profissionais de saúde são atendidos por psicólogos. Foto: EBC

Dilema

Atuando como psicóloga clínica e hospitalar há 26 anos, no Hospital Universitário Antônio Pedro (Huap-UFF), a psicanalista Ana Paula Brandão acredita que, diante da pandemia, é possível analisar dois cenários. Um é o de pessoas que entendem a gravidade da situação e vão optar por novas formas de comemorar as festas de final de ano. E o outro é o de pessoas que preferem negar a doença.

"Muitas pessoas vão experimentar dilema quanto às confraternizações. Será que devo reunir a família, ou é melhor ficar cada um na sua casa? Essas, provavelmente, vão buscar novas formas de comemorar o Natal, através dos meios digitais ou reunindo-se presencialmente apenas com quem já moram, para manter a tradição de união e troca afetiva comuns à data. Mas também há o outro grupo que vem negando a importância do momento que estamos vivendo. Para elas, nada mudou, vão fazer o Natal como sempre fizeram e isso é preocupante"

Lidando diariamente com pacientes internados pela doença e profissionais da linha de frente, Brandão prospecta, todavia, que nos dois cenários, os sentimentos característicos dessa época do ano não serão esquecidos. Na opinião da especialista, o espírito do Natal se manterá vivo, o que muda são apenas as formas escolhidas para celebrar.

"Os sentimentos despertados nessa época estarão aí e serão visíveis, porque as pessoas já têm isso dentro delas, os afetos não serão adiados para o próximo ano. Apenas o modo como são celebrados habitualmente é que vai precisar aguardar para ser retomado no ano que vem. Em 2020, as comemorações serão diferentes, mas o sentimento permanecerá o mesmo. Talvez acrescido de um maior valor às oportunidades de encontro”

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